quarta-feira, novembro 14, 2012

Homenageada 2012 – Clarice Lispector


É preciso muita coragem para homenagear Clarice, pois dificilmente encontramos alguém a quem sua literatura não toque, tornando qualquer tentativa de exaltá-la completamente sem sentido. “¿Esse gelo está frio, né?” “Está.” “Ah, tá.” Mas afinal, é impossível sair ileso da menina que dispara à professora: “Depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?”... e nós aqui, desesperadamente tentando ser felizes, imaginando que há uma recompensa no final do arco-íris.
É por essas e outras que desde 2004 ando flertando com essa moça, que me queimou profundamente com sua “Água Viva”. Este ano, após atravessar “A via crucis do corpo”, encarar “A bela e a Fera”, enxergar a “Maça no Escuro”, sentir a “Paixão segundo GH” e me animalizar “Perto do coração selvagem”, percebi por mim que Clarice é potência. E potência é a característica de tudo aquilo que pode ser, sendo mais do que simplesmente ser, a possibilidade de ser. E Clarice é a potência de tudo que pode ser.
Por me ensinar que potência é maior do que o ser, e que a finalidade é só um capricho dos ingênuos, Clarice recebe, neste ano de 2012, a homenagem tardia da admiração que sempre tive por ela.

[L.M]

“Como se eu já não tivesse problemas que bastassem, hoje pisei uma imensa água-viva. Sofro demasiado minhas próprias aflições para que eu descubra tão tardiamente sentir também o horror de outrem. É em estado de grito que cotejo minha alma à sua, Clarice. Chegamos, por trilhas separadas e em tempos distantes, ao mesmo estado de grito.

Interrompi minha fala por dois dias. Passei-os apenas absorvendo você, Clarice. E agora não estou mais em estado de grito: estou em estado de Água Viva. Eleve-se o infinito exponencialmente a si mesmo e terás a exata medida do que sinto.”

(Leandro Müller, in Pequeno Tratado Hermético sobre Efeitos de Superfície, p.29-30)

Laureado 2012 – Tiago Santos


Por sorte minha, a vida não para de me surpreender. Este ano, o inusitado da premiação fica por conta da láurea de um autor ainda não publicado. Apesar de sua vasta experiência na escrita cinematográfica, foi com seu inédito livro de contos “A velocidade dos objectos metálicos” que o escritor e roteirista português Tiago Santos me arrebatou. Já logo no primeiro parágrafo de seu “manuscrito” ele desfere seu primeiro golpe:

Ele gosta do seu gabinete, da secretária de madeira imponente e pesada, da forma como as canetas se compõem no lado direito, junto à fotografia da família; ele próprio, uma mulher bonita de cabelo preto apanhado num rabo-de-cavalo que não sorri e uma rapariga de sete anos que mostra demasiado os dentes (falta-lhe um no meio) entre eles.

Li o livro com atenção e não parei de ressaltar passagens extraordinárias. Mas como escrever bem não é o suficiente para receber este prêmio, preciso ressaltar que sua forma de ver o mundo embotou a minha e, é por isso que ele merece essa láurea: por ensinar uma nova ótica para enxergar as coisas cotidianas, Tiago Santos recebe minha láurea neste ano de 2012.

[L.M.]

"¿O incêndio iniciado sob as prateleiras de bebidas, agravado pelo romper das garrafas de alto teor alcoólico, principalmente conhaques e uísques, muitas vezes servidos diluídos em água para enganar os clientes, teria sido acidental? A polícia local, embora não tivesse se manifestado oficialmente, desconsiderava a hipótese, pois, do contrário, as saídas de emergência da casa não estariam passadas à corrente pelo lado de fora e as treze vítimas fatais teriam escapado apenas com leves chamuscos e alguma pouca fumaça nos pulmões.
Soube naquele dia que eram onze mulheres ao todo, nove delas brasileiras, uma polonesa e uma ucraniana. Do homem morto, ninguém sabia dizer mais do que seu nome, Mihajlo, e que lhe faltava o olho esquerdo, e que era famoso por abrir tampinhas de garrafas de cerveja naquela cavidade ocular desfalque e que era oriundo dos bálcãs, precisamente não se sabe de onde. Também ninguém conseguiu explicar-me a ligação do meu irmão com aquela tragédia."

(Leandro Müller, in “¿Integridade?”)